A PURGA DA MORA

VERSUS

O DIREITO DE PREFERÊNCIA

 

            Nas últimas duas décadas, cada vez mais aumentaram-se os empréstimos com garantia imobiliária através de alienação fiduciária. A “hipoteca”, que também é vista como uma espécie de garantia, está cada vez mais escassa, atrevendo-me a afirmar que está “fora de moda”. A explicação é simples e justificada abaixo.

 

Os empréstimos que me refiro aqui não são somente aqueles destinados à aquisição de novos imóveis financiados, mas também e principalmente, à entrega de imóvel que já pertence ao mutuário, em garantia a favor do credor – geralmente Instituições Financeiras – visando a concessão de empréstimos.

 

A diferença entre ambas as situações é gritante: na primeira hipótese, é louvável o estímulo à aquisição de bens, com a circulação de riqueza (sendo esta a principal função de um contrato). Na segunda hipótese, é desprezível a conduta de bancos que após terem concedidos diversas linhas de crédito e operações de forma imprudente (na ânsia de “bater” metas, sem checar a capacidade econômica real, mas apenas a mera possibilidade de empréstimo), exigem do cliente uma garantia real para liquidar o passivo que, muito das vezes, foi induzido pelo próprio credor. Aqui, muito diferente da “circulação de riquezas”, há um agravamento da situação do cliente, muitas das vezes induzido pelo próprio credor, o que dá lastro à teoria do duty to mitigate the loss, cuja abordagem fica para outro artigo.

 

Mas retomando o raciocínio, a alienação fiduciária em garantia de empréstimos é uma modalidade de negócio pelo qual o mutuário (chamado devedor fiduciante) transfere ao mutuante (chamado credor fiduciário) o domínio e a posse indireta de certo bem.

 

A finalidade de tal transferência é garantir a dívida contraída, sem, no entanto, lhe transferir a posse direta.

 

Significa na prática que em relação ao uso e gozo do imóvel, enquanto a dívida estiver em dia, nada muda para o mutuário/devedor.

 

Todavia, ocorrendo a inadimplência, o cenário se altera drasticamente, principalmente a agilidade com que o imóvel pode ser “tomado” pelo credor. Em se tratando de hipoteca, exige-se um processo judicial. Já para a alienação fiduciária, a execução é extrajudicial. Aqui a justificativa da hipoteca cair em desuso.

 

A alienação fiduciária é regida pela Lei nº. 9.514/97. Nos arts. 26 a 30, há a previsão do procedimento de expropriação do bem que foi dado como garantia.

 

Dentre as inúmeras discussões que são levadas ao Judiciário pertinentes ao tema, nos propomos a destacar neste artigo, de forma objetiva e para fins de reflexão, dois conceitos semelhantes, mas que geram consequências totalmente distintas: a “purga da mora” e o “direito de preferência”.

 

Existe um conceito legal “geral” de purga da mora previsto no art. 401, do Código Civil:

Art. 401. Purga-se a mora: I – por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;II – por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data.

 

Pelo fato da expressão “prejuízo” ser muito abrangente e subjetiva, o devedor fiduciante – aquele que tomou o empréstimo e entregou o imóvel como garantia para o credor – poderia ficar deveras vulnerável diante do credor.

 

Daí que a Lei específica que rege o tema (alienação fiduciária imobiliária – Lei nº 9.514/97), não apenas apresentou um conceito mais preciso como também disciplinou o procedimento para purgar a mora.

 

É o que consta no art. § 1º, do art. 26:

Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

  • 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

 

Para o legislador, além do vencimento e inadimplemento, é imprescindível a constituição em mora, que se dá com a intimação do devedor, para que, no prazo legal (de 15 dias), pague, ou seja, purgue a mora.

 

Diante disso, pode-se concluir que purgar a mora é neutralizar os efeitos da inadimplência.

 

Outrossim, por lei, se não purgada a mora no prazo de 15 dias, haverá a consolidação da propriedade, que nada mais é do que a transferência “automática” da propriedade plena em favor do credor. Daí segue-se o procedimento de leilão, que não é objeto de abordagem neste artigo.

 

Então, a purga da mora ocorrida dentro do prazo de 15 dias, se limitará ao pagamento das parcelas em aberto, com os consectários contratuais, sendo indicado pelo credor o montante do saldo devedor até a data do décimo quinto dia contados da intimação.

 

Todavia, a jurisprudência vinha assegurando o direito de purgar a mora para momento posterior à consolidação da propriedade, qual seja, a assinatura do auto de arrematação. Para tanto, passaram os Tribunais a exigir que o credor procedesse à intimação do devedor das datas de realização dos leilões extrajudiciais.

 

A base legal desse entendimento se dava pela interpretação conjunta do art. 34[1] do Decreto Lei nº 70/66, plenamente aplicável às operações de financiamento imobiliário, nos termos do art. 39 da Lei nº 9.514/97.

 

Assim, o exercício do direito de purgar a mora, até o ano de 2017, poderia se dar em dois momentos distintos: a) antes da consolidação, dentro do prazo de 15 dias contados da intimação, mediante quitação do saldo em aberto; b) após a consolidação e até a assinatura do auto de arrematação, mediante pagamento integral do débito, inclusive dos encargos legais e contratuais, consoante Ministra Nancy Andrighi (REsp 1433031/DF, DJE 18/06/14) [2].

 

Com o aumento significativo de julgados acerca do tema, houve a edição da Lei nº 13.465/2017, que alterou sensivelmente o procedimento de execução extrajudicial previsto na Lei nº 9.514/97, encampando entendimentos jurisprudenciais que se formaram nas duas décadas entre os atos normativos.

 

Sem querer esgotar os assuntos e polêmicas que surgiram com a nova lei – que também será objeto de outro(s) artigo(s) – foi previsto o direito de preferência na aquisição do imóvel, com o novo regramento conferido à Lei nº 9.514/97, pela Lei nº 13.465/17.

 

O art. 27, §2º-B, é claro:

“§ 2o-B. Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel…”

 

Diante desse cenário, desde a entrada em vigor da nova lei (Lei nº 13.465/17), não mais se pode cogitar de purga da mora após os 15 dias contados da intimação, sendo que, ultrapassado tal prazo, resta assegurado ao devedor o direito de preferência, a ser exercido até o segundo leilão.

 

Exatamente nesse sentido o STJ proferiu julgado recente, nos autos Resp nº 1818156/PR, que fez menção ao REsp 1.649.595/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/10/2020, DJe 16/10/2020.

 

Outrossim, a despeito de serem dois institutos totalmente diferentes, em dois momentos distintos, tem-se também que o montante a ser pago é diferente para ambos.

 

Enquanto na purgação da mora paga-se o débito em aberto, mais os encargos legais e contratuais (art. 26, § 1º), no direito de preferência paga-se o débito integralmente, inclusive  todos os custos e gastos despendidos pelo credor para a aquisição e para levar o imóvel à leilão (art. 27, § 2-B).

 

Todavia, a despeito desse conceito legal entre os dois institutos, há um conceito jurisprudencial distinto em relação à purga da mora, ou seja, não basta a quitação das parcelas vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, para que o devedor seja considerado como “regular”.         Segundo a jurisprudência, para efeitos de purgação da mora é necessário o pagamento integral do débito (parcelas vencidas e a vencer), inclusive dos encargos legais, previstos no art. 26, § 1º, da Lei nº 9.514/97.

 

Nesse sentido, destaca-se o julgado do TJMG, Apelação Cível  1.0000.17.014275-6/002, Relator(a): Des.(a) Lílian Maciel , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/09/2021, publicado em 08/10/2021.

 

Igualmente, convém destacar o Tema 26, do TJSP, referente ao IRDR n. 2166423-86.2018.8.26.0000[3], que trouxe em seu bojo o conceito de purgação da mora, com base em decisões do Superior Tribunal de Justiça, a saber:

Nesse aspecto, considerando que a purgação pressupõe o pagamento integral do débito, inclusive dos encargos legais e contratuais. (…) Ministra Nancy Andrighi (REsp 1433031/DF, DJE 18/06/14).

 

Evidente que há uma tendência de se seguir o mesmo entendimento dispensado para alienação de bem móvel, que possui entendimento sedimentado em Precedente Judicial[4], isto é, para o devedor salvar seu imóvel, deverá pagar integralmente o débito, desvirtuando o instituto da purga da mora, que é, de fato, uma oportunidade para se tornar regular diante do credor.

 

De todo modo, uma vez ocorrendo o inadimplemento da dívida garantida por imóvel alienado fiduciariamente, é possível evitar a perda do bem mediante a purga da mora ou o direito de preferência em relação a outros interessados em arrematar o imóvel, a depender do momento em que o procedimento esteja, sendo prudente observar a jurisprudência que existe acerca do tema.

 

Sem prejuízo disso, existem diversas outras maneiras de se proteger o bem, mediante a utilização de argumentos visando a descaracterização da mora, ou a anulação do procedimento de execução extrajudicial ante a falta de intimação ou a irregularidade desta, ou o lance vil, sendo diversas as possibilidades de se defender a garantia ofertada.

 

Por isso, seja no início do procedimento ou já após o prazo para a purga da mora finalizado, é imprescindível contar com profissionais especializados que podem auxiliá-lo na proteção e até na reversão da consolidação da propriedade fiduciária.

 


[1]  Art 34. É lícito ao devedor, a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, totalizado de acôrdo com o artigo 33, e acrescido ainda dos seguintes encargos:

I – se a purgação se efetuar conforme o parágrafo primeiro do artigo 31, o débito será acrescido das penalidades previstas no contrato de hipoteca, até 10% (dez por cento) do valor do mesmo débito, e da remuneração do agente fiduciário;

II – daí em diante, o débito, para os efeitos de purgação, abrangerá ainda os juros de mora e a correção monetária incidente até o momento da purgação.

[2] STJ – REsp: 1433031 DF 2013/0399263-2, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/06/2014, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/06/2014.

[3] O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo recentemente se posicionou acerca da divergência jurisprudencial no que diz respeito à aplicação das modificações introduzidas pela lei 13.465/17, em especial quanto ao prazo final da prerrogativa da purgação da mora pelo devedor, nos casos de garantia em alienação fiduciária, através do julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 2166423-86.2018.8.26.0000. Em síntese, o Tribunal decidiu que a alteração introduzida pela lei 13.465/17 ao art. 39, II da lei 9.514 de 97 tem aplicação restrita aos contratos celebrados sob sua vigência, não incidindo sobre os contratos firmados antes da sua entrada em vigor, ainda que constituída a mora ou consolidada a propriedade, em momento posterior ao seu início de vigência.”

[4] Tema 722/STJ. – tese firmada: “Nos contratos firmados na vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária.

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